A LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL E O ADMINISTRADOR PÚBLICO

A Lei de Responsabilidade Fiscal anuncia no seu preâmbulo que "estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade fiscal...". Não pretende, ao contrário do que fez a Argentina, consolidar as normas pertinentes a finanças públicas, permanecendo vários outros diplomas e disposições parciais em vigor com prejuízo à compreensão e sistematização do tema. Atribui, assim, nova acepção ao termo que pretende regular.

O legislador não conceitua o termo finanças públicas, no que merece o aplauso da doutrina.

Do texto legal, verifica-se que a expressão abrange a totalidade dos recursos públicos e suas diversas formas de movimentação, na mais lata acepção. Estão assim compreendidas as diversas formas de aquisição: receitas oriundas de tributos, de contribuição, de renda sobre patrimônio, de atividade industrial, agropecuária, serviços e as transferências. Também estão abrangidas as diversas formas de administração dos recursos: como aplicação no mercado financeiro, aquisições, contratação de serviços, locação de bens, pagamentos, realização de despesas em geral. Abrange a movimentação desde a captação até o emprego de recursos dos três poderes, das três esferas de governo, da administração direta e indireta pública.

O vigor legislativo não deixou margem à possibilidade de construção de conceito que procurasse equiparar os recursos públicos à privados quando o ente vinculado à órbita estatal tivesse similitude com entidades particulares. Colocou uma premissa fundamental: o dinheiro público. Mesmo que a entidade seja aparentemente autônoma, se financeiramente dependente do erário, ficará submetida às disposições da norma.

Ao contrário do que um exame superficial possa revelar, constitui um grande avanço a tentativa de aplicar uma uniformidade jurídica. Os operadores do Direito, responsáveis que serão pela mutação do conceito de finanças públicas, não podem ignorar a tendência do uso de processos eletrônicos de gerenciamento de recursos públicos, como o SIAFI, na União e o antigo SIAFEM, nas demais esferas de governo, e o caminho inexorável da integração dessas base de dados, patrocinadas com recursos de organismos internacionais.

Forçoso reconhecer que há sob o aspecto prático importantes vantagens dessa uniformização: facilidade para adequação dos sistemas eletrônicos de tratamento de dados, porque os demonstrativos passam a guardar certa uniformidade; facilidade no treinamento e na difusão do conhecimento; coerência com o conceito de recursos públicos ampliado para fins de controle. Não é portanto verdadeiramente inovador que para determinados fins a responsabilidade subsidiária dos cofres públicos, mantidos por impostos, seja o vínculo necessário e suficiente para regramento mais vigoroso do controle e limitador da ação administrativa.

Ensina Pontes de Miranda que "o que importa é erguer a sistemática que serve à lei; e fazê-la fecunda, no seu plano e dentro dos limites em que tem de ser aplicada". Indispensável, portanto, erigir um conceito de finanças públicas, haurido de sua própria essência. Desse modo, para o fim da Lei de Responsabilidade Fiscal:

Finanças públicas é o conjunto de atividades realizadas pela Administração Pública, direta e indireta, dos três poderes, de todas as unidades federadas e da União, com o objetivo de definir as riquezas do Estado, arrecadar receitas estabelecendo a aplicação e realização das despesas, bem como gerir o patrimônio público..

Esse conceito não se distancia muito, no aspecto da matéria versada, daquele proposto por De plácido e Silva, Pedro Nunes ou Ives Gandra Martins e Celso Ribeiro Bastos. A diferença passa a existir em relação a:

    • inclusão de pessoas jurídicas de direito privado vinculadas a esfera estatal; e
    • abrangência dos demais poderes, além do Executivo.

Ainda um ponto deve ser destacado, concernente ao fato de que o legislador, seja pela pretensão didática, seja pelo interesse de não permitir a evolução de exegese liberais, que retirassem do subjugo da norma algum órgão, foi redundante em várias passagens. Não houve, porém, contradição, mas ênfases que a boa técnica dispensaria.

Assim, ao se referir aos três poderes, açambarcou no Poder Legislativo os Tribunais de Contas; destacou ao lado dos mesmos o Ministério Público. Colocou ao lado da administração direta os fundos, as autarquias, as fundações e um tertium genus: empresas estatais dependentes, cujo conceito legal fez vir também insculpido no texto.

Explica-se: o Direito Financeiro ocupa-se do conjunto de regras e princípios que possibilitam ao Estado executar sua atividade financeira, considerando inclusive a incidência das normas sobre particulares. Também está no âmbito do Direito Financeiro a fixação de limites que devem ser respeitados pelo Estado no desempenho da atividade financeira como garantia do particular frente a Administração Pública.

A nova amplitude da expressão finanças públicas e do objeto do Direito Financeiro correspondem efetivamente ao conceito de moderno e deve inserir-se na órbita de ação do controle, transparência e tecnicidade compatíveis com a visão perspectiva de uma sociedade amadurecida e cônscia do zelo que se deve dedicar à boa e regular aplicação de recursos públicos.

A LRF ao definir que "estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal e dá outras providências", descortina ampla gama de hipóteses de compreensão. No atual momento da vida nacional, essa lei vem preencher lacunas claramente perceptíveis, constituindo um novo quadro de referência para o gestor público.

A fase inicial de conhecimento da lei tem propiciado análises por vezes negativas. Vozes críticas visualizam o novo diploma legal como uma espécie de punição aos ordenadores de despesa, condenando o texto como potencial deletério ao exercício da discricionariedade ínsita ao cargo público de direção. Emergem os costumeiros anátemas de que a burocratização ou o detalhismo legal criariam novas dificuldades à gestão administrativa – alegações que, não faz muito tempo, foram igualmente levantadas contra a Lei nº 8.666/93, de licitações e contratos, hoje indispensavelmente incorporada ao cotidiano das organizações públicas.

Para outros críticos, a Lei de Responsabilidade Fiscal quebra o pacto federativo; criminaliza excessivamente a malversação na gestão pública; sobrepõe incólume o mercado financeiro; relega novos investimentos públicos; e apóia-se em modelo proveniente de organismos internacionais.

A leitura plana e atenta do texto aprovado dilui de alguma forma essas temíveis considerações. Descontados alguns pontos de conteúdo realmente discutível, algum excesso normativo, algumas inadequações redacionais, bem como as naturais e humanas falhas, o que remanesce no corpo de dispositivos da Lei ainda pode ser avaliado como ferramenta significativa de orientação e controle para um decisivo segmento de atividade do poder público.

Orientação, admita-se, necessária e oportuna. Em um tempo de globalidade decisória, em que o padrão administrativo dos países de tradição democrática será, mais do que nunca, o da eficiência e da confiabilidade, é penoso constatar que a Administração brasileira ainda paga com atraso seus fornecedores, descumpre contratos, despreza mecanismos racionais de controle de custos, apega-se a processos decisórios lentos e improvisados.

Tanto a LRF, quanto a citada Lei nº 8.666/93 integram uma concepção legislativa que vem ressuscitar a questão, sintetizada em 1987 e 1990 pela Profª Anna Maria Campos, a propósito do termo accountability e sua difícil tradução para o português. Em firme depoimento, a autora, especialista em Administração Pública, relata seus esforços para traduzir a palavra e sua perplexidade ao concluir que, na cultura administrativa brasileira, "o que falta é o próprio conceito, razão pela qual não dispomos da palavra em nosso vocabulário".

A comparação com outras sociedades é inevitável: "Nas sociedades democráticas mais modernas espera-se que os governos – e o serviço público – sejam responsáveis perante os cidadãos. A maioria dos estudiosos norte-americanos acredita que o fortalecimento da accountability e o fortalecimento das práticas administrativas andam juntos". Quanto à realidade brasileira, a primeira diferença observada pela autora diz respeito ao próprio relacionamento entre a administração e seu público, e à própria noção de "público":

"Pelo lado dos funcionários, um desrespeito pela clientela (exceto os clientes conhecidos ou recomendados) e uma completa falta de zelo pelos dinheiros públicos (supostamente pertencentes a um dono tão rico quanto incapaz de cobrar). Pelo lado do público, uma atitude de aceitação passiva quanto ao favoritismo, ao nepotismo e todo tipo de privilégios: tolerância e passividade ante a corrupção, a dupla tributação (o imposto mais a propina) e o desperdício de recursos".

Em busca do significado da palavra, a autora busca em Frederic Mosher a oposição entre "responsabilidade objetiva", ou a obrigação de responder por algo, e "responsabilidade subjetiva", que vem "de dentro da pessoa". Accountability, sendo responsabilidade objetiva, "acarreta a responsabilidade de uma pessoa ou organização perante uma outra pessoa, fora de si mesma, por alguma coisa ou por algum tipo de desempenho... quem falha no cumprimento de diretrizes legítimas é considerado irresponsável e está sujeito a penalidades".

A responsabilidade fiscal é, na verdade, apenas um aspecto da "responsividade" global e objetiva da Administração para com o público usuário. Responsividade, em tradução canhestra de accountability, significaria a capacidade do poder público de "fornecer respostas" às demandas do cidadão, em um nível amplo, que incluiria não só a responsabilidade patrimonial do Estado por ato administrativo, como a salvaguarda do cidadão contra os riscos da concentração do poder burocrático, acentuando o caráter de obrigação que, se não é percebido subjetivamente pelo detentor da função pública, deverá ser exigido pela "possibilidade de atribuição de prêmios ou castigos àquele que se reconhece como responsável".

Vê-se, portanto, que esse conceito de responsabilidade deverá realmente ser aperfeiçoado como questão de democracia, trazendo nesse percurso a inevitável necessidade de desenvolvimento das estruturas burocráticas e dos controles, para atendimento às obrigações do Estado; bem como de uma delimitação mais exata da discricionariedade administrativa, financeira e contábil dos entes políticos, em todos os níveis, notadamente o municipal.

Retomando, todavia, à vertente crítica, impõem-se pertinentes indagações sobre a constitucionalidade de certos dispositivos; dúvidas sobre a extensividade de determinados controles; e, sobretudo, o reiterado questionamento de natureza global acerca da adequação do novo texto ao modelo federativo, especificamente no que tange à autonomia dos entes da Federação. Tais questões serão abordadas a seu tempo, sob um ângulo pragmático, voltado para a orientação do administrador público.

No campo de estudos do direito público - em um contexto que cada vez mais se caracteriza pela diluição de fronteiras entre áreas outrora estanques, tendendo inexoravelmente à interdisciplinaridade - é o momento de pesquisar e se posicionar em favor de soluções jurídicas que tenham nitidez e criatividade, prosseguindo, ou não, fórmulas adotadas em outros países de tradição democrática.

A Lei de Responsabilidade Fiscal, que visa principalmente a responsabilidade do gestor público, exige agora a contribuição de todos aqueles que de uma forma ou outra venham administrar bens e dinheiros públicos. É preciso que o gestor, o ordenador de despesa, o técnico-assessor, o intérpretes e aplicadores da lei, busquem a melhor compreensão e operacionalização das determinações legais.

Esse destinatário da LRF almeja um trato produtivo e resolutivo com as demandas de segmentos específicos da comunidade; e ao mesmo tempo, vê-se diante das inevitáveis exigências procedimentais, afetas ao modelo burocrático e às imposições de cunho institucional-legal.

A implantação efetiva de um texto legislativo, que introduz mudanças consideráveis nos parâmetros de responsabilidade fiscal, implica, ademais, considerável esforço adaptativo nos núcleos de gestão.

Em um país cujo sistema institucional exibe ainda alto índice de formalismo, é preciso que a mudança pretendida transcenda o "papel" e se torne propriamente comportamental, efetiva, vivenciada ativamente por seus executores.

É o salto necessário a ser dado em todas as camadas da Administração, sobretudo nos segmentos estaduais e municipais. A sugestão óbvia para consegui-lo seria designar, em cada um destes segmentos, grupos executivos encarregados da atualização da gestão fiscal, assessorados por técnicos e consultores das áreas financeira, contábil e administrativa. Tal providência seria imposta pela própria sobrevivência institucional, em razão, mesmo, das sanções que a lei aplica ao ordenador inconseqüente.

Como síntese e epígrafe do diploma legal em comentário, erige-se o princípio da continuidade administrativa, agora ancorado na maior fidedignidade do Plano Plurianual - PPA, da Lei de Diretrizes Orçamentárias -LDO - e da Lei Orçamentária Anual -LOA. Tais documentos, com maior lastro em procedimentos e informes de realidade, deverão certamente combater a sediça afirmativa de que "o orçamento é mera obra de ficção".

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